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Conheça a História da Comunidade Quilombola Serra da Guia em Poço Redondo/SE

Dona Zefa é a representação da Comunidade Quilombola Serra da Guia

Por Gilson Neto em 23/03/2023 às 22:53:29

Foto: Cariri Cangaço

As terras de quilombos são territórios étnico-raciais com ocupação coletiva baseada na ancestralidade, no parentesco e em tradições culturais próprias. Elas expressam a resistência a diferentes formas de dominação e a sua regularização fundiária está garantida pela Constituição Federal de 1988. O Decreto 4.887/2003 define que o INCRA, autarquia vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), é o órgão federal responsável pela titulação dos quilombos, com competência concorrente do Distrito Federal, estados e municípios. Para fins de regularização fundiária, o INCRA elabora Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID) que reúnem informações fundiárias e cadastrais das famílias, bem como a caracterização antropológica, histórica, econômica e ambiental da área quilombola. Esse trabalho tem gerado um grande acervo de dados, registrando de maneira inédita um arcabouço de manifestações e características dos quilombos nos períodos escravocrata e pós-escravocrata. O objetivo da parceria entre INCRA, CGPCT e NEAD (MDA) e UFMG é sistematizar e dar publicidade às informações contidas nos RTIDs, em muitos casos ignoradas pela historiografia oficial. Esse material, registrado no âmbito dos processos administrativos do INCRA, foi transposto para uma linguagem acessível, com o apoio de diversos colaboradores, destacando-se os autores das etnografias dos RTIDs. Os livretos trazem também depoimentos dos próprios quilombolas. Eles testemunham a continuidade de uma luta fortalecida pela esperança de que o conhecimento de sua história garanta finalmente a compreensão da legitimidade de seu pleito pela titulação. A publicação dos livretos visa, assim, a contribuir para o reconhecimento das comunidades quilombolas, estimulando a difusão de informações qualificadas sobre elas. Reunidas nesta Coleção, as histórias de resistência quilombola agora podem ser conhecidas mutuamente pelos quilombolas das diversas regiões do país. Espera-se também que este material forneça a gestores públicos, educadores, pesquisadores e demais interessados informações acessíveis sobre essas comunidades.

Comunidade Quilombola Serra da Guia

O Quilombo Serra da Guia está localizado no município de Poço Redondo, na região chamada Sertão do São Francisco, no estado de Sergipe. Cerca de 200 famílias ocupam historicamente um território localizado entre o povoado de Santa Rosa do Ermínio, em Poço Redondo, Sergipe, e o município de Pedro Alexandre, na Bahia. A Serra da Guia, que dá nome à comunidade, faz parte do complexo da Serra Negra, cadeia de morros situada na divisa entre os estados de Sergipe e Bahia. O direito sobre o seu território de 9.013,18 hectares foi validado por decreto de desapropriação publicado em 22 de novembro de 2012.

Quem é do Quilombo Serra da Guia reconhece que seu nome faz referência ao passado de resistência à escravidão. A Serra é chamada "da Guia" porque foi usada pelos escravizados como marcação de uma rota de fuga. "Da Guia" também serve para identificar o grupo, adjetivando os nomes dos moradores ou daqueles originários do Quilombo, como no caso de D. Zefa da Guia. As atividades cotidianas são divididas entre dois espaços do território: o Alto e o Pé da Serra da Guia. Na Serra estão localizados as fontes de água, as áreas agrícolas e o cemitério da comunidade. No Alto da Serra também são realizadas as festas mais importantes, em homenagem à Santa Cruz e a N. Sra. da Imaculada Conceição: "A novena é a tradição dos escravos aqui", diz D. Zefa. "Também fazem um samba de coco. Samba de roda." Origem do quilombo O povoamento colonial da região do Sertão do São Francisco começou no século 17, quando as primeiras sesmarias foram distribuídas na margem direita do Rio São Francisco. A Freguesia de São Pedro do Porto da Folha, região onde Poço Redondo está situado, surgiu no século 18 e seus limites chegaram a abranger a maior parte do Sertão do São Francisco.

Desde o século 17, a região do Morgado de Porto da Folha, principalmente as matas fechadas da Serra Negra, serviu como esconderijo para os fugidos da escravidão. Registros históricos indicam que a posse da terra na região era disputada por colonos, indígenas, negros libertos e fugidos. As fontes históricas indicam também que desde o século 17 existiam vários mocambos – como também eram chamados os quilombos – na região do Sertão de Poço Redondo. Marca dessa presença é a denominação de três localidades no interior de Sergipe com o nome de Mocambo: uma no município de Aquidabã, outra em Porto da Folha e outra em Frei Paulo. Há registros da atuação de capitães-mores destacados para desarticular esses mocambos. Assim, as fontes confirmam que, mesmo antes da ocupação colonial das terras, a região era habitada por indígenas e quilombolas resistindo à escravidão. As famílias que hoje compõem o Quilombo Serra da Guia chegaram à região na segunda metade do século 19, fugindo do cativeiro em Pernambuco. Ao chegar à Serra da Guia, encontraram outros moradores, em sua maioria descendentes de escravizados que haviam fugido antes deles. De acordo com D. Zefa da Guia e Manuel Belarmino, morador da comunidade vizinha chamada Boqueirão, os primeiros negros que chegaram à Serra da Guia seriam remanescentes do Quilombo dos Palmares, desarticulado em fins do século 17. Diz-se que antigamente na Serra da Guia era tudo terra de heréu, não havia donos e todos compartilhavam o espaço. "Lá era nosso, era de todo mundo, não tinha quem dissesse isso aqui é meu; não existia isso", conta D. Zefa da Guia. Parteira, afamada rezadeira, liderança da comunidade e importante referência na vida comunitária, foi tema do filme "D. Josefa: A Guia da Serra", dirigido por Rita Simone. No filme, D. Zefa conta: Quando era no fim do começo das vindas dos escravos, exigiram a vender aquelas pessoas, os senhores de engenho, e maltratar muito, e ter muitos problemas. Aí eles fugiram e vieram se esconder e vieram aqui pra Serra da Guia; foram pra Serra que se chama dos Cavalos, em Pernambuco, e uma parte ficou pra lá e outros ficaram pra cá. E aí a minha mãe. A vó dela foi pegada a dente de cachorro, que era índia, índia legítima que o cabelo não dava uma volta, e morena do olho preto, e uma pessoa que era muito bonita, minha vó. E aí minha mãe nasceu dessa raiz, e criou essa semente e ramou. E agora nós estamos aqui produzindo e reconhecendo quem somos nós, e pedindo reforço pras coisas melhorarem pra todos nós.

A Serra da Guia era conhecida como um local seguro e de refúgio. Prova disso foi ter sido usada com frequência por Lampião e seu bando para se refugiar da perseguição das volantes. A passagem do cangaço pelo território quilombola ficou marcada pela entrada de alguns membros da comunidade para o bando de Lampião. Até meados do século 20, as terras da Serra da Guia eram usadas coletivamente para o cultivo agrícola. Com a expansão da pecuária no sertão sergipano, começou a expropriação das terras, alterando o modo de ocupação tradicional da Fazenda Guia, ou, como era chamada, Guia. A fazenda era dividida nas localidades de Crauara, Três Bocas, Mansinha, Saco da Guia, Lajero, Caldeirão D"Anta, Pia Nova e Sítio Manelino.

Transformações no território

Antes da chegada da pecuária, as roças familiares eram colocadas tanto no Pé da Serra como no Alto da Serra. Cada família ocupava temporariamente uma porção de terras que estivesse disponível para o cultivo e, depois, seguia para outra porção, deixando aquelas terras em repouso. As roças não eram cercadas e as terras ficavam na posse de cada família apenas durante o período de uso, que começava com o preparo da terra e terminava com a colheita das plantações. Os terrenos planos do Alto da Serra eram usados prioritariamente no período da seca quando a mandioca era plantada para garantir a produção da farinha. Nas demais épocas do ano, plantava-se no vale, ou Pé da Serra. As lavouras eram postas próximas aos poços e pias, que são reservatórios formados pelo acúmulo de água nas cavidades das pedras. D. Zefa da Guia confirma: "na Serra era mandioca né, cada um plantava seu remendinho, não era roça grande não, era roça pequena e aqui também plantavam". Na Serra, também tinham construído casas de farinha, onde processavam coletivamente a mandioca colhida nas roças. O uso coletivo da terra, a ausência de cercas separando as áreas de uso das famílias e a criação coletiva de animais de pequeno porte permanecem nas lembranças dos mais velhos. A terra aqui era um morgado, não tinha cerca. Criava aí cabra, ovelha, quem tinha uma, duas cabecinhas de gado, que toda vida foi pouco, criava tudo solto, coletivo. Não tinha esse negócio de abuso, ou preocupação, enquanto foi. Quando apareceu esse jeito de ficarmos sem nada, chegou um senhor e preparou uma papelada falsa e outras pessoas assinaram. Disse que era o dono dessa terra e disse que tinha comprado essas terras. Em um momento a gente passou a ficar sem elas... ficamos sem ela porque o povo tinha aquela forma de não querer reagir. E essa terra bastante, muita, essa terra de morgado. E como era essa terra que a gente sabia que era nossa mesmo, da nossa família, caminhamos e foi descoberto que era um quilombo. Que era dos escravos e que essas pessoas tinham o direito de ficar morando nessas terras aqui. Lutamos, batalhamos e agora estamos aqui com essa luta e Deus vai ajudar. Agora a gente vai ficar na melhor com ela coletiva, como que era, como que ninguém nunca vendeu. (D. Zefa da Guia.)

A extração de produtos da mata complementava o sistema produtivo local. Catavam ouricuri, ou licuri, para a fabricação de rosários que eram comercializados nas feiras da região. A atividade extrativa era prioritariamente feminina. D. Zefa da Guia dá o seu depoimento: A era desse tempo era muito pesada e as mães sofreram muito e só achavam recurso na Serra. Tinha o inhame-da-mata, tinha carapitaia, aquelas batatinhas desse tamanho (pequenas). As mães ralavam, faziam o mingauzinho e davam pros filhos comer; outros tiravam o ouricurizeiro, o palmito, cortava e quando acabava batia com o cacetezinho, quando acabava tirava aquele palmitozinho e botava pros meninos comer. Mucunã lavada em sete águas – tudo isso minha mãe comeu. As transformações no modo de viver nas terras se intensificaram a partir da década de 1970. Foi nessa época que Seu João da Guia, morador da comunidade e parente de vários quilombolas, apareceu com um título de propriedade, lavrado em cartório, de todas as terras usadas secularmente. Disse que tinha comprado as terras de uma família proprietária de cartórios em Propriá. Alguns quilombolas não aceitaram essa notícia, muito menos o que veio depois: a tentativa de expulsá-los das terras habitadas por suas famílias há tantas gerações. Diante da resistência dos moradores e depois da interferência das autoridades da cidade, foi celebrado um acordo entre Seu João da Guia e os demais moradores, segundo o qual poderiam adquirir uma porção das terras que já ocupavam. O tamanho da área a ser cedida dependeria da antiguidade da ocupação. Assim, quem tivesse casa de adobe ficaria com uma parcela maior de terras e quem tivesse casa de palha, uma parcela menor. Esse critério supostamente comprovaria a antiguidade de ocupação de cada família. A maioria ficou com parcelas muito reduzidas (entre 4 e 8 tarefas de terras), pelas quais jamais realizaram efetivamente o pagamento. O tamanho diminuto das terras recebidas de Seu João da Guia inviabilizava o cultivo até mesmo para a sobrevivência. Isso obrigou as famílias a, em pouco tempo, vender suas terras para fazendeiros locais e se mudar para cidades ou permanecer como funcionários das fazendas. Algumas famílias tiveram um melhor resultado em suas negociações particulares com Seu João da Guia, como é o caso da família de D. Zefa, que adquiriu 120 tarefas de terra: Eu disse: "Olha, eu não poderia falar duas vezes aqui, mas lá eu falo até dez, porque ninguém me segura se eu não tiver direito nessa terra, porque meu sogro tem aquela temporada toda, cento e tantos, a minha sogra tem outra temporada – porque nasceram ali, se criaram ali e não ter direito nem a 20 tarefas de terra? Isso não é muito para vocês dar esse direito a ele, que morou lá, que nasceu lá e ficou com as terras todas do povo. Vocês não acham que é muito não?" Aí o delegado disse: "Você sabe que mulher é a parte fraca, nesse tempo mulher não tinha...", mas eu disse: "Eu não sou fraca, eu sou forte, porque o senhor viu que ele me deu como eu ter meu direito se eu ficar no meu modo, como é que eu vou sair de lá, 4 tarefas para 12 filhos e mais de 50 netos ou 100, que tinha filha dele, do meu sogro, que já tinha parido 12 filhos, outro tinha 14, outro tinha 18, tudo isso era neto. E os bisnetos onde iam viver? Aí eu comecei a conversar e disse: "Não, mas vamos fazer um negócio". "Vamos deixar para outro dia", disse o delegado. Logo em seguida a esses conflitos, Seu João da Guia vendeu suas terras remanescentes, a preço muito baixo, para fazendeiros da região. Todo esse episódio e também o fato de que Seu João da Guia não teria recursos para comprar todas as terras, levam muitos moradores a afirmar que, na verdade, Seu João da Guia teria sido um laranja, usado por pessoas poderosas que tinham interesses na região. Colhendo um destino trágico, Seu João da Guia morreu na miséria, dependendo da caridade dos filhos até o fim de seus dias. Hoje, alguns dos seus netos não possuem terras, mas fazem parte da Associação Quilombola da Guia. Dessa forma, os modos de viver e lidar com a terra em Serra da Guia se alteraram significativamente. A expropriação das terras pelas fazendas e o surgimento da propriedade privada restringiram o acesso dos quilombolas a áreas produtivas, inviabilizando atividades agrícolas, como os cultivos no Pé da Serra e no Alto da Serra, e atividades extrativas, como as coletas da palha de ouricuri, de xique-xique, de inhame e batatas-do-mato, todas agora em terras de particulares. Outra mudança se refere aos esquemas de ajuda mútua, como os batalhões, que são mutirões para o trabalho coletivo. Eles foram reduzidos pela ausência de área agricultável. O acesso à água, que anteriormente era coletivo, passou a ser limitado pelos novos donos das terras. Com isso, tornou-se necessário contar com o abastecimento feito por caminhões pipa, cedido pelas autoridades públicas, ou fazer uso de cisternas que alguns moradores possuem. No início dos anos 2000 foram construídas casas com recursos do governo federal para áreas quilombolas, porém, como não foram instalados nem sistema de esgoto ou de tratamento de água, as condições de higiene se mantiveram precárias. Além disso, as casas foram construídas muito próximas umas das outras, diferentemente do padrão tradicional de residência, no qual eram separadas por algumas centenas de metros e organizadas ao redor dos núcleos familiares. Alguns moradores consideram que a proximidade das casas seria a principal causa de tensões e conflitos atualmente vivenciados na Serra da Guia.

A religiosidade

Na Serra da Guia são praticadas as religiões católica e espírita, englobando a doutrina kardecista, a umbanda, o candomblé, o toré, entre outras manifestações de matrizes africana e indígena. A prática do catolicismo não exclui outras e as mesclas passam a conformar religiosidades próprias. Alguns dos mais antigos moradores da Serra da Guia relatam que são rezadores e espíritas pela herança de pais e avós, que lhes transmitiram seus conhecimentos. D. Zefa da Guia usa da força de entidades como Preto Velho, Iemanjá, Padre Cícero, Jesus, entre outros, em suas rezas e benzimentos. Sua fama de benzedeira é reconhecida muito além da Serra da Guia. É procurada com frequência por pessoas vindas de diversas partes do Brasil e até por políticos importantes. Seu renome de rezadeira e parteira motivaram a produção de uma reportagem veiculada no programa Globo Repórter sobre suas atividades. D. Zefa da Guia também usa ervas e receitas medicinais, que ela conhece profundamente. Aqui é alecrim-de-caco que a gente faz, tira o galho, e quando acabar pisa, e faz o sumo com mel, e cura gastrite, é o remédio que cura a gastrite do estômago; e fraqueza, aqui a arruda. A gente toma banho pra limpeza, e aqui o pinho roxo, a gente também toma banho pra descarregar o corpo de olho grande; e pra muita coisa, a gente toma com alho, arruda e pinho roxo. (…) o pé de juazeiro que eu faço remédio pra gripe, faço remédio para inflamação de garganta e dor nas costas. É muito bom o juá, que ele é abençoado; é onde eu faço reunião, o padre celebra missa debaixo desse pé de juazeiro e faz casamentos; já foram oito casamentos feitos aqui; eu já batizei mais de 70 crianças, porque eu sou madrinha de 2.708 afilhados. Sobre a sua experiência de parteira, D. Zefa narra: Eu resolvo dando umas massagens e passando um óleo e trazendo ele no jeito que ele pode chegar até como vai ficar na bacia pra ele nascer. E quando for dentro de poucos instantes, ele já está normal, direitinho, e ele vai nascer. Quando é dois – que um é atravessado e o outro é na direção de nascer –, quando aquele primeiro nasce, aí eu vou à busca do outro, vejo onde é que os pés estão, vejo onde é que a cabeça fica e aí eu vou ajeitar, mando a mulher respirar fundo, quando ela respira fundo, aí eu trago o menino e ele vai, e ele nasce, aí não vai dar nenhum problema de quebra de cabeça. Quando ele vem assentado tem um jeito, eu mando ela fazer força. Eu ajudo a ela e o menino vem, nasce, eu tiro os dois pezinhos e o menino nasce todo completamente; quando a cabecinha fica, às vezes fica dentro da mulher, aí o que eu posso fazer: eu coloco meus dois dedos e baixo o queixo do menino e ele nasce. Nunca morreu nenhum, graças a Deus, nem enganchado, nem porque passou da hora, e nem porque foi antes do tempo. (Depoimentos do filme: "D. Josefa: a Guia da Serra"). Na festa em homenagem à Santa Cruz, as pessoas se reúnem na casa de D. Zefa, rezam juntas e de lá seguem em procissão até a capela que fica no Alto da Serra, levando as imagens de Padre Cícero e da Virgem. As rezas e cânticos são feitos em todo o percurso e são acompanhados pelos tocadores de tambor. Depois da cerimônia dentro da capela, a procissão retorna em direção à casa de D. Zefa, onde, após um intervalo, recomeça o samba de coco ao som de tambores, trombone e clarinete. Formam uma roda e todos dão as mãos, batendo os pés no chão. As canções vão surgindo no momento e várias pessoas começam a dançar e cantar em roda. Eu chorei, Maria, Eu chorei, Maria... Quando eu vou não volto mais

O trabalho na terra

Dentre as atividades desenvolvidas na Serra da Guia estão o trabalho de lavrador, criador de animais e artesão de vassouras e cestas, atividades hoje complementadas pelo trabalho de diarista em fazendas vizinhas. Entre as atividades agrícolas, está a lavoura de curta duração de feijão, milho e amendoim, além da lavoura de palma, que serve principalmente para alimentar os animais. São criados galinhas, porcos, cavalos, ovelhas e carneiros. Na divisão do trabalho, os homens fazem prioritariamente o trabalho do campo e ordenham as vacas, e as mulheres são as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e pela fabricação de cestos e vassouras para a venda. D. Zefa da Guia lembra: Fazia vassoura, fazia esteira, fazia saco de esteira pra colocar feijão, pra botar milho, fazia tudo isso os mais velhos e outros bordava, fazia renda de bico aquelas almofadas...

"Todos somos uma só"

No final dos anos 1990 foi criada pelos moradores uma associação de pequenos agricultores que posteriormente se tornou a Associação Manoel Rosendo Quilombola da Guia. A reivindicação do território do quilombo reforça os laços comunitários, as práticas coletivas e a resistência às ameaças e problemas. O vínculo com o território é demonstrada pela expressão "é lá que o umbigo é enterrado". Esse pertencimento inclui aqueles que precisaram se mudar para cidades, mas aderiram à luta quilombola e reivindicam o retorno assim que o território for titulado. D. Zefa da Guia explica: Era da mesma família. Todos somos uma só. E é através de nossos troncos, nossas raízes ... e nós estamos ajudando um ao outro na questão da terra. Nós estamos um perto do outro nas amizades, no coração. Se vendo um e o outro como se pode. A liderança de D. Zefa é reconhecida para além da Serra da Guia, sendo fundamental para as reivindicações da comunidade. Em um blog sobre ela (http://zefadaguia.blogspot.com.br/) são contadas suas experiências e atividades como liderança da comunidade. Alguns moradores do quilombo explicam a importância de D. Zefa: Ela representa muita coisa aqui, aqui no povoado Guia, ela mesmo. A voz de Deus, se não for ela não vai nada pra frente, tudo com ela na frente, tudo com ela na frente. Zefa da Guia, Zefa da Guia, se não for não vai nada pra frente. É água, é comida, é tudo, tudo que vem pra ela, vem pra nós. (Maria José. Filme: "D. Josefa: a Guia da Serra") Pra mim ela representa nós todos aqui, porque ela é quem luta. Nós temos que rezar muito todos os dias, pra pedir a Deus pra ela não fechar os olhos, que depois que ela fechar aqui também acaba tudo, que ela é quem luta pelo povo aqui. (José Augusto. Filme: "D. Josefa: a Guia da Serra") A definição dos limites do território foi feita em assembleia com base nos lugares que fazem parte da história da Serra da Guia. O território tradicionalmente ocupado é de "uma légua de sombra da Serra", ou seja, a partir do Pé da Serra as terras que estivessem no raio de seis quilômetros. Os pontos mais importantes foram definidos como sendo: o Cemitério da Serra, a Capela de São Clemente, o Pé da Serra, a Fazenda São Clemente, Fazenda de Manoel Dórea, o Riacho Jacaré, o Caximbeiro, o José do Poço, o Riacho da Guia, o Saco da Guia, a Fazenda do Carlinhos, a Fazenda do Nabor e a Fazenda Santa Isabel.

Esta narrativa foi composta por Mariana Gonçalves Frizero, com base no Relatório Antropológico de Reconhecimento e Delimitação do Território da Comunidade Quilombola de Serra da Guia (Poço Redondo/SE), elaborado em 2009 sob a coordenação de Paulo Sérgio da Costa Neves e Hippolyte Brice Sogbossi. As fotos foram retiradas do próprio relatório e do blog de D. Zefa da Guia: http://zefadaguia.blogspot. com.br/ (acessado em: 20/12/2015). Informações adicionais foram obtidas do documentário "D. Josefa: A Guia da Serra", dirigido por Rita Simone. Disponível em: (https://www.youtube.com/ watch?v=8ppybmUXFMA)

Uma palavra da comunidade Serra da Guia

Nossa comunidade hoje está melhor do que antes. Com a devolução das terras nós podemos fazer as roças, o que antes não tínhamos condições. No tempo em que era tudo terra de heréu, os coronéis tomavam conta. Mas ainda enfrentamos dificuldades como a falta de incentivos e financiamentos para a plantação da roça, pois aqui a seca castiga; a falta de moradia; a falta de médicos; a falta de estradas. Nós temos tido muitas lutas para ter uma escola de melhor qualidade. Estamos lutando no Conselho de Educação do Município, da qual fazemos parte para que sejam selecionados professores que falem da nossa história, pois as crianças precisam aprender sobre a sua história e sua origem. Nós sonhamos por dias melhores. Que tenhamos mais saúde, educação, água encanada para a comunidade, que é muito sofrida. O INCRA iniciou o processo de desintrusão dos fazendeiros dentro do território, seis propriedades já foram pagas e para duas delas já foram emitidas Imissão de Posse e entregues aos quilombolas (portanto já tem terras para trabalhar no próximo período chuvoso). Temos informações que ainda este ano teremos a Imissão de Posse das demais propriedades já pagas. Foi iniciada a construção de uma creche no quilombo através de recursos do PAC2, ainda não concluída. Está sendo instalado, através do Programa Água Doce/MMA, o primeiro poço com dessalinizador para tornar a água salobra em água para consumo humano. A Emdagro trabalha para realizar cadastramento de todos os quilombolas no DAP - Declaração da Aptidão ao Pronaf, onde cada família quilombola terá acesso a diversas políticas públicas, a exemplo do Pronaf, crédito rural, garantia safra, aposentadoria, auxílio-maternidade, programa de mecanização, programa de distribuição de sementes, entre outros. A Associação está providenciando a DAP Jurídica para acessar linhas de financiamentos de máquinas e implementos para a comunidade já a partir do ano de 2016. Sabemos das dificuldades, mas procuramos atuar junto com a comunidade, pois nosso trabalho é todo coletivo e outros parceiros podem encontrar soluções para a melhoria da qualidade de vida dos quilombolas. Muitas ações ainda serão realizadas. Temos um sonho da autossustentabilidade da comunidade Serra da Guia.

Texto composto por José Sandro Silva Santos, presidente da Associação da comunidade, e Francisco Luciano Macedo Firmino, engenheiro agrônomo da Emdagro Poço Redondo e parceiro da comunidade.

Projeto Formulação de uma Linguagem Pública Sobre Comunidades Quilombolas

PARCERIA INCRA/CGPCT/NEAD; UFMG/OJB, CEBRAS, NUQ COORDENAÇÃO GERAL Lilian C. B. Gomes, Deborah Lima, Juarez Rocha Guimarães, Maria Consolação Lucinda, Leonardo Avritzer CONCEPÇÃO DE TEXTO E EDIÇÃO FINAL Deborah Lima EDIÇÃO DE TEXTO Juarez Rocha Guimarães, Gustavo A. Fonseca Silva SUPERVISÃO DAS NARRATIVAS Deborah Lima, Carlos Eduardo Marques CONSULTA ÀS COMUNIDADES Lilian C. B. Gomes, Aline Neves Rodrigues Alves, Isabella G. Miranda, Luciana Costa, Marilene Ribeiro, Suely Virgínia dos Santos ADMINISTRAÇÃO Kaianan Mauê S. Rosa, Priscila Z. Martins MAPAS E FOTOGRAFIAS Alexander Cambraia N. Vaz PROJETO GRÁFICO Paulo Schmidt

Frizero, Mariana Gonçalves Quilombo Serra da Guia / Mariana Gonçalves Frizero. - Belo Horizonte : FAFICH, 2016. 16 p. (Terras de quilombos) Baseado no Relatório de reconhecimento e delimitação do território da comunidade quilombola de Serra da Guia, Poço Redondo, SE, coordenado por Paulo Sérgio da Costa Neves e Hippolyte Brice Sogbossi. 1. Quilombos. 2. Antropologia. 3. Relatório de reconhecimento e delimitação do território da comunidade quilombola de Serra da Guia, Poço Redondo, SE. I. Título. II. Série.

DILMA ROUSSEFF Presidenta da República

PATRUS ANANIAS Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário

MARIA FERNANDA RAMOS COELHO Secretária Executiva do Ministério do Desenvolvimento Agrário

ROBERTO WAGNER RODRIGUES Diretor do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural

ZORILDA GOMES DE ARAÚJO Coordenadora do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural

EDMILTON CERQUEIRA QUÊNER CHAVES DOS SANTOS Coordenação Geral de Políticas para Povos e Comunidades Tradicionais

MARIA LÚCIA FALCÓN Presidenta do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

RICHARD MARTINS TORSIANO Diretor de Ordenamento da Estrutura Fundiária

ISABELLE ALLINE LOPES PICELLI Coordenadora Geral de Regularização de Territórios Quilombolas

GUILHERME MANSUR DIAS JULIA MARQUES DALLA COSTA Coordenação Executiva do Projeto

SERVIÇOS QUILOMBOLAS Apoio técnico Superintendências nos estados

A Coleção Terras de Quilombos reúne um conjunto de narrativas a respeito da formação, do modo de vida e das lutas travadas por comunidades quilombolas brasileiras para se manter em seus territórios tradicionais. Em cada livreto, uma comunidade quilombola é apresentada em sua singularidade. Ao todo, a Coleção oferece um panorama da diversidade de trajetórias vividas por ex-escravizados – incluindo por vezes indígenas e grupos em outras situações sociais – para conquistar a sua independência e se estabelecer na terra autonomamente. O fato de terem sido deixados à própria sorte após a Abolição resultou em uma multiplicidade de caminhos percorridos para conseguirem consolidar os seus territórios. Foram muitos os modos como ocuparam as suas terras e distintas as maneiras como formaram as suas comunidades, enfrentando todo tipo de desafios para se relacionarem livremente com seu entorno. O conceito de quilombo esteve associado ao período da colônia e do império. Com a Abolição, os quilombos deixaram de ser mencionados, como se o fim de quatro séculos de escravidão significasse a garantia de liberdade. No entanto, os quilombolas continuaram e continuam a lutar para reproduzir seus modos de criar, fazer e viver, resistindo às dificuldades, injustiças e preconcepções legadas pelo período escravocrata. São essas as histórias narradas nesta Coleção. São histórias do Brasil vistas pelo prisma de quem, com suas tradições, formas de vida, religiosidades e respeito à terra, enriquece o mosaico da sociodiversidade brasileira.


Fonte: Governo Federal

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Renan Calheiros

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